ensaios

Os 1001 Sonhos de Sheila Goloborotko
Ana Cândida de Avelar

Intervenções urbanas operam no sentido de despertar-nos da rotina quase letárgica, de nossos caminhos percorridos diariamente, inúmeras vezes, como sonâmbulos impermeáveis ao entorno dinâmico e agitado do cotidiano atual.

Em 1001 Sonhos, Sheila Goloborotko propõe esse despertar aos habitantes de duas grandes metrópoles mundiais, porém, em sua ação, não há um alarme sonoro, alto e agudo, como soa muitas vezes na vida urbana, mas a delicadeza de um gesto amoroso de alguém que acorda o adormecido com a sutileza de um afago. A estratégia da artista visa o transeunte que se depara inesperadamente com um travesseiro-sonho depositado num determinado lugar da cidade. A partir de então, ele ou ela passa a conhecer o sonho de outrem por meio de uma narrativa e de uma imagem em diálogo com a história narrada.

No travesseiro há ainda um pedido para quem o encontra: que envie um sonho seu ao blog do trabalho em processo. Portanto, a obra se cria devido a um encadeamento de narrativas e imagens de sonhos. É preciso notar que essa cadeia remete à figura do elo, recorrente nos últimos trabalhos da artista, objeto cuja existência depende de sua própria função conectiva. Esses elos são visitados e revisitados, transformados de matriz em impressão em instalação e, agora, intervenção. Desse modo, vai se compondo, por meio da colaboração individual de sonhadores em São Paulo e Nova York, uma comunidade de desejos íntimos conectados pela ação e reação de cada um dos participantes.

O título do trabalho se inspira em As Mil e Uma Noites e, seguindo a estratégia de Sherazade, Sheila tece uma grande história, feita de outras histórias que se entrelaçam. Os cem sonhos são contados dez vezes cada um até que criam a narrativa final – cada travesseiro é reproduzido dez vezes e espalhado por dez pontos diferentes das cidades.

Também o verso do poeta irlandês W. B. Yeats “I have spread my dreams under your feet”  (Espalhei meus sonhos sob seus pés) serve como base para a idéia do trabalho. No poema, o eu-lírico deseja oferecer ao leitor os “tecidos bordados divinos”, feitos de luz e sombra, que habitam o céu. Se para tecer, como sabemos, é preciso entrelaçar fios soltos, o tecido de sonhos da intervenção será confeccionado pela artista ao utilizar as histórias dos muitos sonhos recebidos para criar um sonho final, um sonho-teia. O último verso do poema de Yeats é tão sutil quanto a proposta de Sheila: “Tread softly because you tread on my dreams” (Pise suavemente porque você pisa em meus sonhos).

A terceira referência é uma frase do psiquiatra Carl Jung, para quem a análise dos sonhos visava uma forma de auto-conhecimento e, portanto, do despertar sobre si mesmo.

O sonho que inaugura a série possui ares bucólicos. Nele, a protagonista caminha em direção a uma árvore que vê ao longe. Após grande esforço, quando finalmente chega até ela, alcança sua copa, de onde avista, ao mesmo tempo, o Empire State Building, a torre Eiffel e “o mundo inteiro”. Esse mundo parece, portanto, feito dos ícones de Nova York e Paris, daquilo que pode substituir até mesmo os nomes dessas cidades sem deixar qualquer dúvida em relação àquilo do que se trata. Ao mesmo tempo, são cidades exemplares no que diz respeito ao grande influxo de pessoas e, por isso mesmo, congregam os mais variados sonhos: aqueles de quem chega para ficar e de quem delas conhece apenas seus ícones mais proeminentes e, simultaneamente, mais desgastados pelo excesso de reprodução de sua imagem. Afinal, a vida nas cidades é como o universo dos sonhos: plena de ilusões. A imagem nebulosa, incerta, que Sheila cria para o primeiro sonho coletado é a promessa dessa visão onírica, que desconhece limites.